Assim como existem momentos que devem ser guardados para sempre, há outros que não deveriam nem ter existido, mas deixam rastros eternos. Exatamente essa junção de boas e más recordações forma a exposição “Memórias sobrevivem”, da dupla Gláucia Queiróz e Cacau Inêz, aberta na ITV Cultural até o fim de abril. Enquanto uma artista traz a memória afetiva da infância, quando brincava sobre as lonas de caminhão na oficina do pai, a outra faz um tributo ao desastre ambiental ocorrido em Mariana, em 2015, quando uma barragem de rejeitos rompeu jogando lama para todo o lado e matando 19 pessoas.
Em ambos os trabalhos, as artistas utilizaram materiais alternativos. Os mesmos que fizeram parte dos cenários retratados. Gláucia usou a própria lona de caminhão como suporte para silkar as fotos de quando era criança e, no lugar de tinta, Cacau usou 50 tons de terra para reproduzir as cenas da tragédia de Mariana sobre papel reciclável. As 13 peças, expostas na ITV Cultural, mesmo com linguagens e mensagens diferentes, acabaram se casando nas cores sóbrias, no desejo de memorizar, e formando esse encontro de duas colegas que faculdade, formadas no ano passado já na maturidade, que acabaram se tornando grandes amigas.
Tanto Gláucia como Cacau, antes de irem atrás do diploma de artes visuais, trataram primeiro de ser mãe. O caminho inverso que muitas hoje fazem, quando preferem primeiro se estabilizar profissionalmente para depois ter filhos. Agora, a dupla de artistas, já com os filhos crescidos, colocou em prática o desejo guardado há anos e deu mais técnica ao trabalho que elas já desenvolviam de forma autônoma.
A uberlandense Gláucia Queiróz dividiu parte da sua vida entre as artes plásticas e a culinária. Já fez bolos decorados, já teve um café, além de pintar telas. A academia foi uma chave para ela entrar em um mundo de possibilidades, onde aprendeu a usar novos materiais, como é o caso das lonas surradas de caminhão. A inspiração veio do pintor gaúcho, fotógrafo e gravador Carlos Vergara, que por diversas vezes também usou lona crua como base para seus trabalhos, assim como o artista mineiro Aecio Sarti.
No memorial disposto nas paredes da ITV Cultural, Gláucia traz momentos da infância e homenageia o pai, o mecânico aposentado Manuel Queiróz, que por ironia está em uma cama sem memória, devido ao estágio avançado de Alzheimer. “Isso me dá um conforto muito grande, de lembrar do que a gente já foi. Tem foto minha fazendo comidinha, na oficina com o papai aqui em Uberlândia. Ele forrava a oficina com lona pra gente brincar no chão . É uma memória afetiva muito forte”, disse Gláucia.
Cláudia Inêz, ou simplesmente Cacau, também faz uma referência ao pai, José Domingues. Nascida em Arapuã, no Alto Paranaíba, aprendeu com o patriarca da família o respeito pelo meio ambiente. “Ele nunca foi só um pai, foi também um educador, porque nunca permitiu que a gente jogasse lixo no lugar errado. Foi minha primeira escola e hoje eu também cobro isso dos meus filhos”.
Nos oito trabalhos expostos, Cacau acabou voltando ao passado, durante as suas brincadeiras com terra no quintal de casa. A terra, ponto forte das obras da artista, foi encontrada em Uberlândia em mais de 50 tons diferentes. Os desenhos são feitos sobre papel reciclável e formam as imagens que mais impactaram Cacau a respeito da tragédia de Mariana, ocorrido há 3 anos. “Eu trabalho muito a consciência ambiental com as crianças em sala de aula. O adulto que não procurar aprender também, vai sempre repetir os mesmo erros e vai acontecer isso aí, como em Mariana e agora em Brumadinho”, disse Cacau.
Assim como Gláucia, Cacau também usa a referência em Carlos Vergara. Outra inspiração é o pintor polonês, escultor, gravador, fotógrafo, artista plástico e, acima de tudo, ambientalista, Fras Krajcberg, que, por décadas, denunciou a violência do homem contra a natureza, utilizando materiais como troncos e raízes calcinadas pelos incêndios florestais.
ITV CULTURAL
ITV Cultural é um espaço expositivo, criado com o intuito de apoiar propostas de artes visuais na cidade, com o incentivo da ITV Urbanismo, a mais antiga incorporada do Brasil, criada em Uberlândia em 1937. As exposições apresentadas são organizadas e têm a curadoria de pesquisadores cadastrados nas linhas de pesquisa do Núcleo de Pesquisa em Pintura e Ensino (Nuppe) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ao longo de 14 anos, o Nuppe mantém uma parceria com a ITV e realiza sistematicamente mostras artísticas na cidade.
Serviço: A exposição “Memórias sobrevivem”, de Gláucia Queiróz e Cacau Inéz, pode ser visitada até o fim de abril, das 9h às 17h, na ITV Cultural, na avenida Getúlio Vargas 869, Centro. A entrada é gratuita.